segunda-feira, 20 de agosto de 2007

PAISAGENS DO HIMALAIA - “O LEGADO DA PERDA” É UM ACHADO

Resenha
por Enzo Carlo Barrocco



"O Legado da Perda": boa surpresa em 2007.

“O Legado da Perda” (Objetiva, 2007, 292 página) levou nada mais, nada menos que oito anos para ser escrito e tem estreita relação com a experiência da própria autora. Kiran Desai, indiana de Chandigarh, no convés da fragata desde 1971, ambienta sua narrativa numa aldeia longínqua de seu belo país. Um juiz sisudo e fechado, pretendendo fugir do mundo que só trouxe a ele desilusões, se isola num casebre no sopé do Monte Kanchenjunga, no Himalaia. Diante de vários problemas com a neta adolescente que se apaixona pelo professor de matemática, e com o fiel cozinheiro que só pensa no filho que tenta a sorte trabalhando ilegalmente nos Estados Unidos, ainda tem que conviver com uma revolta indo-nepalesa prestes a eclodir que trará sérios problemas a vida de todos os moradores da região. A globalização é apenas um dos muitos assuntos abordados por Kiran. Alguns dilemas humanos enfrentados por uma gama de personagens que vão do colonialismo aos conflitos de religião, de raça e do nacionalismo. Com “O legado da Perda”, Kiran recebeu o prestigiadíssimo prêmio “Man Booker Prize” do ano passado. O detalhe é que a autora escreveu parte do livro quando esteve, por algum tempo, no Rio de Janeiro. Disse ela: “Não tenho dúvidas que muitas das passagens do romance situadas nas comunidades pobres do Himalaia foram influenciadas pelas impressões que levei das favelas cariocas”. Kiran soube muito bem dosar assuntos que são temas principais neste início de século. O jornal americano The New York Times comentou: “Kiran Desai explora, com muita intimidade e propriedade, praticamente todos os dramas da contemporaneidade internacional: globalização, multiculturalismo, desigualdade econômica, fundamentalismo e violência terrorista. Apesar de ambientado em meados dos anos 1980, é atual como o melhor tipo de romance pós-11 de setembro”. Atualmente Kiran reside em Nova York, mas antes de sair da Índia com apenas 14 anos morou na Inglaterra. Kiran é a mulher mais jovem a vencer o Prêmio Man Booker Prize, que é um prêmio somente para autores da língua inglesa.


TRECHO DO LIVRO "O LEGADO DA PERDA"

Um

Durante todo o dia as cores tinham sido como as do anoitecer, neblina deslizando como uma criatura de água pelos grandes flancos de montanhas tomadas por sombras e profundidades oceânicas. Brevemente visível acima do vapor, o Kanchenjunga era um pico distante talhado em gelo, absorvendo o resto da luz, no topo uma pluma de neve soprada alto pelas tormentas.

Sentada na varanda, Sai lia um artigo sobre lulas-gigantes num exemplar antigo da National Geographic. De vez em quando, levantava os olhos para o Kanchenjunga, observava sua mágica fosforescência com um arrepio. Sentado num canto isolado com seu tabuleiro de xadrez, o juiz jogava consigo mesmo. Enfiada debaixo de sua cadeira, onde se sentia segura, estava Mutt, a cachorra, roncando baixinho no sono. Uma única lâmpada nua pendia do fio no alto. Fazia frio, mas dentro da casa era ainda mais frio, a escuridão, o ar gélido contidos por paredes de pedra muito espessas.

Ali, nos fundos, dentro da cozinha cavernosa, estava o cozinheiro tentando acender a lenha úmida. Mexia nos gravetos com cuidado, por medo da comunidade de escorpiões que vivia, amava e se reproduzia na pilha. Uma vez, encontrara uma mãe, inchada de veneno, com 14 bebês nas costas.

O fogo enfim se acendeu e ele colocou a chaleira em cima, tão amassada, tão encoscorada como uma coisa escavada por uma equipe arqueológica, e ficou esperando que fervesse. As paredes eram chamuscadas, encharcadas, alhos pendurados pelos caules encardidos nas vigas queimadas, chumaços de fuligem grudados como morcegos no teto. A chama lançou um mosaico alaranjado brilhante sobre o rosto do cozinheiro, e a metade superior de seu corpo esquentou, mas um vento gelado torturava a artrite de seus joelhos.

A fumaça subiu pela chaminé e saiu, misturou-se à névoa que ganhava velocidade, a chegar cada vez mais densa, escurecendo as coisas por partes: metade de uma montanha, depois a outra metade. As árvores, transformadas em silhuetas, surgiam e submergiam de novo. Gradualmente, o vapor tomou o lugar de tudo, objetos sólidos viraram sombra e nada restou que não parecesse moldado ou inspirado no vapor. O alento de Sai voava em nuvens de suas narinas e o diagrama de uma lula-gigante construída inteiramente de fragmentos de informação, sonhos de cientistas, afundou inteiramente nas trevas.

Ela fechou a revista e saiu para o jardim. No limiar do gramado, a floresta era antiga e densa; as touceiras de bambu subiam a mais de três metros na escuridão; as árvores eram gigantes ataviadas de musgo, encaroçadas e tortas, cheias de tentáculos das raízes de orquídeas. A carícia da névoa em seu cabelo parecia humana e, quando estendeu os dedos, o vapor tomou-os delicadamente na boca. Pensou em Gyan, o professor particular de matemática, que devia ter chegado há uma hora com seu livro de álgebra.

Mas já passava das quatro e meia e ela usou a neblina pesada para desculpá-lo.

Quando olhou para trás, a casa havia desaparecido; ao subir de volta os degraus da varanda, o jardim desapareceu. O juiz tinha adormecido e a ação da gravidade sobre os músculos relaxados puxava para baixo as rugas de sua boca, fazia pesarem as faces, mostrava a Sai exatamente como ele ia fi car quando morresse.

- Onde está o chá? - ele acordou e exigiu. - Ele está atrasado - disse o juiz, falando do cozinheiro, não de Gyan.

- Vou buscar - ela ofereceu.

A cor cinzenta tinha vindo também para dentro, pousou na prataria, fuçou pelos cantos, transformou o espelho do corredor em nuvem. Ao entrar na cozinha, Sai viu de relance a própria imagem se borrar e inclinou-se para gravar seus lábios na superfície, um beijo de estrela de cinema perfeitamente desenhado.

- Oi - disse, meio para si mesma, meio para alguém.

Nenhum humano jamais vira uma lula-gigante viva, e embora elas tivessem olhos do tamanho de maçãs para varrer o escuro do oceano, sua solidão era tão profunda que podiam jamais encontrar outra de sua tribo. Sai sentiu-se banhada pela melancolia dessa situação.

(...)

Nenhum comentário:

ALVARENGA PEIXOTO: O POETA INCONFIDENTE

Inácio José Alvarenga Peixoto, poeta fluminense (Rio de Janeiro 1744 – Ambaca, Angola 1793), estudou no Colégio dos Jesuítas no Rio de Janei...