terça-feira, 28 de outubro de 2008

VIDAS SUBURBANAS – A DESIGUALDE IRROMPE OS SÉCULOS

Resenha

por Enzo Carlo Barrocco



"O Cortiço": uma indisfarçável crítica social

O movimento literário naturalista no Brasil teve no romance “O Cortiço” (Martin Claret, 2007, 240 páginas) sua obra mais importante, cujo autor, o maranhense Aluísio Azevedo (São Luís 1857 – Buenos Aires 1913) numa explanação pormenorizada descreve a vida suburbana da cidade do Rio de Janeiro no final do século XIX. O romance é narrado na terceira pessoa e todas as mazelas sociais da época são enfocadas, inclusive, traições, violências sexuais, relacionamento lésbico e homossexual. É inconteste a influência do contista e romancista português Eça de Queiroz (Povoa do Varzim 1844 – Paris 1900) sobre a obra de Aluísio. Vários aspectos da sociedade da época são condensados na narrativa. O Português João Romão consegue comprar um estabelecimento comercial no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro, assim como um pedaço de terra onde constrói algumas casinhas para alugar, desencadeando, daí, toda a trama. “O Cortiço” foi publicado pela primeira vez em 1890, há 118 anos, portanto, mas traz em seu bojo algo de atual, pois os cortiços do século XIX transformaram-se, devido a desigualdade social na qual o Brasil mergulhou, nas favelas dos nossos tempos, que vieram acompanhadas por traficantes de armas e de drogas, milícias, guerrilha urbana, entre tantos outros problemas. Aluísio Azevedo, exímio observador da vida urbana encontrou nos subúrbios cariocas, material para construir de forma clara, uma obra definitiva, classificada por muitos críticos como sua obra-prima.



TRECHO DE “O CORTIÇO”


João Romão foi, dos treze aos vinte e cinco anos, empregado de um vendeiro que enriqueceu entre as quatro paredes de uma suja e obscura taverna nos refolhos do bairro do Botafogo; e tanto economizou do pouco que ganhara nessa dúzia de anos, que, ao retirar-se o patrão para a terra, lhe deixou, em pagamento de ordenados vencidos, nem só a venda com o que estava dentro, como ainda um conto e quinhentos em dinheiro.

Proprietário e estabelecido por sua conta, o rapaz atirou-se à labutação ainda com mais ardor, possuindo-se de tal delírio de enriquecer, que afrontava resignado as mais duras privações. Dormia sobre o balcão da própria venda, em cima de uma esteira, fazendo travesseiro de um saco de estopa cheio de palha. A comida arranjava-lhe, mediante quatrocentos réis por dia, uma quitandeira sua vizinha, a Bertoleza, crioula trintona, escrava de um velho cego residente em Juiz de Fora e amigada com um português que tinha uma carroça de mão e fazia fretes na cidade.

Bertoleza também trabalhava forte; a sua quitanda era a mais bem afreguesada do bairro. De manhã vendia angu, e à noite peixe frito e iscas de fígado; pagava de jornal a seu dono vinte mil-réis por mês, e, apesar disso, tinha de parte quase que o necessário para a alforria. Um dia, porém, o seu homem, depois de correr meia légua, puxando uma carga superior às suas forças, caiu morto na rua, ao lado da carroça, estrompado como uma besta.

João Romão mostrou grande interesse por esta desgraça, fez-se até participante direto dos sofrimentos da vizinha, e com tamanho empenho a lamentou, que a boa mulher o escolheu para confidente das suas desventuras. Abriu-se com ele, contou-lhe a sua vida de amofinações e dificuldades. “Seu senhor comia-lhe a pele do corpo! Não era brinquedo para uma pobre mulher ter de escarrar pr’ali, todos os meses, vinte mil-réis em dinheiro!” E segredou-lhe então o que já tinha junto para a sua liberdade e acabou pedindo ao vendeiro que lhe guardasse as economias, porque já de certa vez fora roubada por gatunos que lhe entraram na quitanda pelos fundos.

Daí em diante, João Romão tornou-se o caixa, o procurador e o conselheiro da crioula. No fim de pouco tempo era ele quem tomava conta de tudo que ela produzia, e era também quem punha e dispunha dos seus pecúlios, e quem se encarregava de remeter ao senhor os vinte mil-réis mensais. Abriu-lhe logo uma conta corrente, e a quitandeira, quando precisava de dinheiro para qualquer coisa, dava um pulo até à venda e recebia-o das mãos do vendeiro, de “Seu João”, como ela dizia. Seu João debitava metodicamente essas pequenas quantias num caderninho, em cuja capa de papel pardo lia-se, mal escrito e em letras cortadas de jornal: “Ativo e passivo de Bertoleza”.

E por tal forma foi o taverneiro ganhando confiança no espírito da mulher, que esta afinal nada mais resolvia só por si, e aceitava dele, cegamente, todo e qualquer arbítrio. Por último, se alguém precisava tratar com ela qualquer negócio, nem mais se dava ao trabalho de procurá-la, ia logo direito a João Romão.

Quando deram fé estavam amigados.

Ele propôs-lhe morarem juntos, e ela concordou de braços abertos, feliz em meter-se de novo com um português, porque, como toda a cafuza, Bertoleza não queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o homem numa raça superior à sua.

João Romão comprou então, com as economias da amiga, alguns palmos de terreno ao lado esquerdo da venda, e levantou uma casinha de duas portas, dividida ao meio paralelamente à rua, sendo a parte da frente destinada à quitanda e a do fundo para um dormitório que se arranjou com os cacarecos de Bertoleza. Havia, além da cama, uma cômoda de jacarandá muito velha com maçanetas de metal amarelo já mareadas, um oratório cheio de santos e forrado de papel de cor, um baú grande de couro cru tacheado, dois banquinhos de pau feitos de uma só peça e um formidável cabide de pregar na parede, com a sua competente coberta de retalhos de chita.

O vendeiro nunca tivera tanta mobília.

- Agora, disse ele à crioula, as coisas vão correr melhor para você. Você vai ficar forra; eu entro com o que falta.

Nesses dias ele saiu muito à rua, e uma semana depois apareceu com uma folha de papel toda escrita, que leu em voz alta à companheira.

- Você agora não tem mais senhor! declarou em seguida à leitura, que ela ouviu entre lágrimas agradecidas. Agora está livre! Doravante o que você fizer é só seu e mais de seus filhos, se os tiver. Acabou-se o cativeiro de pagar os vinte mil-réis à peste do cego!

- Coitado! A gente se queixa é da sorte! Ele, como meu senhor, exigia o jornal, exigia o que era seu!

- Seu ou não seu, acabou-se! E vida nova!

(...)




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