O CONTISTA ...
José Maria Moreira Campos (Senador Pompeu 1914 — Fortaleza 1994) contista e poeta cearense é considerado um dos maiores contistas
brasileiros, tendo recebido várias condecorações em vida. Moreira pertenceu à
Academia Cearense de Letras e teve suas
obras traduzidas para alemão, o francês, o hebraico, o italiano e o inglês. Em 1993 ele foi agraciado com a Medalha da
Abolição, a maior comenda concedida pelo governo do Estado do Ceará e a placa de Honra ao Mérito da Prefeitura Municipal
de Fortaleza. O século XX produziu um dos contistas de rara
habilidade literária, especialmente no conto, um gênero que não se
entrega a boa parte dos escritores, mas
que em Moreira Campos tem um dos seus
grandes autores.
...E O CONTO.
IRMÃ CIBELE E A MENINA
Quando
a mãe dos meninos morreu, Dona Madalena, que é espírita e mulher de
muito prestígio (à tarde, toma o automóvel do marido, dirigido pelo
motorista, e sai em visita aos seus pobres e doentes) recolheu as
crianças e as distribuiu como pôde. Falou com Irmã Cola para ficar com a
menina, que, por sinal, não é tão menina: tem as pernas bem-feitas e os
cabelos bonitos, elogiados pela empregada da casa, ainda na hora em que
ela saía:
– São lindos os cabelos dela!
Dona
Madalena chegou ao colégio na hora em que as freiras merendavam na mesa
grande da área de travejamento forte. Irmã Cola se levantou, outras
freiras se levantaram. Dona Madalena recusou a fatia de bolo. Queria
apenas a xícara de café com pouco açúcar, que ela indicava com os dois
dedos. Os pombos desciam do pombal e vinham arrulhar no parapeito da
área. Irmã Cibele, a recente, atirava-lhes miolo de pão, que antes
arredondava muito entre os dedos. O pavilhão das órfãs, para onde ia a
menina, fica no fundo do longo corredor, que se projeta sob a sucessão
de arcadas e tem como piso lajes antigas comidas por muitos passos. O
pavimento repousava escuro e tranqüilo, que era domingo: as máquinas de
costura fechadas, as cadeiras vazias, as peças de linho arranjadas sobre
a mesa. Apenas algumas órfãs se aproximaram interessadas pela novidade
da companheira. Examinavam-na. Ela olhava o forro, voltava a descansar
na outra perna e insistia em estalar os dedos, para o que Irmã Cola
chamou a atenção. A maleta de tábua da menina, comprada no mercado por
Dona Madalena, foi mais uma vez colocada a um canto no largo dormitório.
Dona Madalena sentiu necessidade de reforçar conselhos. Ela ia ser
feliz, e útil. Aprender um ofício. Agora falava mais para Irmã Cola:
– Crochê, que tanto serve para encher a vida da gente.
Irmã Cola ria e confirmava. Pousou a mão sobre os cabelos compridos da menina:
– Ela vai se dar bem.
A menina quis marejar os olhos, e mordeu o lábio.
Quem
se empolgou também com os cabelos da menina foi Irmã Cibele, que é
recente e atira miolo de pão para os pombos. Alisa-os com as próprias
mãos, enquanto a menina se aplica no bastidor, o que é inusitado. As
outras órfãs deixam cair os trabalhos no colo mais ou menos surpresas,
uma delas de boca aberta, a agulha suspensa no ar. Irmã Cibele teve a
idéia do laço de fita, para compor o rabo-de-cavalo, que apreciou
recuando:
– Fica lindo!
– Cavilação...
Quem
falou assim, de passagem, foi Irmã Teresa. Irmã Cibele pareceu
perturbar-se muito. Baixou os olhos: ela tem esse jeito de os escorregar
pelo chão. Enfiou as mãos muito alvas e finas nos bolsos largos do
hábito, apressou-se, sem muita necessidade, em atender à velha
milionária de lorgnon, com automóvel parado sob o castanheiro no portão
do orfanato, que viera encomendar enxoval para o casamento da neta. Irmã
Cibele explicava:
– São aplicações muito bonitas.
A
velha milionária estava mais interessada na toalha de labirinto. Irmã
Cibele ainda olhava de lado, disfarçadamente, sentindo os passos de Irmã
Teresa, que continuava o seu passeio de inspeção. Irmã Teresa é
pesadona, de tornozelos inchados, meias grossas e velhas sandálias, por
causa dos joanetes. Toma de manhã o seu remédio para o artritismo,
servindo-se do copo de água no filtro, e examina os dedos doloridos e
tortos à luz do sol na arcada da área. O que mais lamenta é já não poder
dar um ponto de crochê. Não tem tato, energia nos dedos, a agulha cai e
ela sente dificuldade em encontrá-la debaixo da cadeira de balanço.
Superintende o orfanato. Irmã Cola tem mais a direção do colégio e o
cuidado da capela: é muito contrita nos seus votos. Irmã Teresa vigia,
superintende:
– Cavilação... muita cavilação.
Embirra
com a simpatia de Irmã Cibele pela menina, aquele agarradio tolo, que
nem é próprio de uma freira. Ainda assim, Irmã Cibele encontra meio de
pegar a menina pela mão e correr com ela até o jardim, que é outra
paixão de Irmã Cola: tem verdadeira loucura pelo canteiro de rosas e se
contraria com as formigas. Ela própria, Irmã Cola, está ali na manhã de
domingo e indica da calçada do pátio as plantinhas que ela quer que as
duas mudem:
– Lá... perto da roseira.
As
mãos da menina estão sujas de terra. Irmã Cibele tem a barra do hábito
umedecida pela grama. Sacode-o na calçada, batendo com os pés. As
velhas, que balançam sempre as cabeças e se xingam, continuam a aguação
dos outros canteiros com os pesados aguadores. Irmã Cola já se afastou, e
Irmã Teresa apareceu sob a arcada, no seu jeito meio míope de cerrar as
pálpebras por trás dos óculos, como se contemplasse o telheiro em
frente, onde os pombos voltam a arrulhar.
Vigia.
Tudo
se deu com a cumplicidade da tarde. O sino da capela já chamara para o
terço. As mesmas máquinas de costura fechadas no pavilhão do orfanato,
sobras de pano e fios pelo chão, as peças de linho ordenadas sobre a
mesa. Irmã Cibele alcançou a menina no corredor do dormitório, depois de
ainda consultar pela porta onde há a cortina. Estava muito em cima da
menina, e sem palavras, que foram articuladas num sopro.
– Seus seios estão ficando lindos...
A
menina propriamente não se surpreendeu. Teve receio, porque também
olhou para os lados, para a porta da cortina. Tremia. Irmã Cibele também
tremia e ofegava, as narinas acesas. Quis ver-lhe os seios, e ela mesma
os procurava, as mãos muito ágeis. Perdia a cabeça. Beijou-os, e agora
os sugava, babando-se e repetindo incoerências:
– Ahnn!
A
sensação da menina foi de cócegas. Quis encolher-se. A excitação
começou a empolgá-la, levantava-a nas pontas dos pés: a língua de Irmã
Cibele era ativa e morna, os dentes mordiam com muita delicadeza, quase
roíam. Um rumor qualquer? Irmã Cibele recompôs a menina, compôs-se a ela
mesma e marchou rápida pelo corredor em direção à capela, os olhos
baixos, naquele jeito seu de os escorregar pelo chão.
A
menina meteu-se pelo dormitório. Está sentada na beira da cama e rói a
unha. Os pensamentos são contraditórios. Sente-se como que esvaziada,
lassa. Lembra-se distantemente de Dona Madalena, que viu pela última vez
na festa de bodas de prata de Irmã Cola. Interfere a figura de Irmã
Teresa. Talvez procure sentar-se junto dela com o bastidor. Nada é
certo, há incoerências. Persiste a sensação dos dentes nos mamilos, que
ela tenta mais uma vez desfazer com a mão, a blusa ainda úmida pela
saliva de Irmã Cibele.
(Moreira Campos, Os Doze Parafusos, in Obra Completa: Contos II, São Paulo, Ed. Maltese, 1996)
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