terça-feira, 4 de junho de 2013

FRANCISCO MIGUEL DE MOURA: O CRIADOR E A CRIA


Francisco Miguel de Moura, poeta, ensaísta, cronista, romancista e crítico literário, piauiense de Francisco Santos, no convés da fragata desde 1933 é um dos bons escritores nordestinos a ultrapassar a linha da notoriedade. O escritor pertence à Academia Piauiense de Letras e é autor de inúmeros livros de poesias, ensaios, crônicas, antologias e romances tendo diversos textos espalhados pela grande rede. Exímio contista, como em todos os outros gêneros, Francisco continua  no seu ofício, blindando seus leitores com excelentes trabalhos.
















O remédio de menino esperto

Xamelego come as unhas, arranca os botões da camisa, corre pela casa atrás das galinhas, entra e sai... Chamego de menino impossível. Naquela manhã quase não escapa de uma pisa.
Zeca precisa ir dar aula. D. Mariinha quer começar seus artesanatos: surrões, vassouras, esteiras, abanadores, cofos, urupembas, com que ajuda na renda da família.
Os dois estão impacientes. Além de outras necessidades, faltara o café da manhã. Café sem açúcar é uma tortura. Quem suporta? É melhor ficar em jejum.
– E cadê a rapadura?
– Tava ali.
– Ali aonde?
Aponta com o dedo e com o beiço:
– Na telha.
– Quem já viu esconder rapadura na telha? O rato vem e come.
– Rato é lá besta. Ele pensa que tem veneno. Há muito tempo que eles não vêm por aqui.
– E por que não guarda em outro lugar? Isto é uma loucura...
– Loucura é colocar em qualquer canto. Escondendo no mais difícil como eu escondo, ele ainda acha. Ora, ora!...
– Ele, quem?
– Ora quem, Xamelego.
– Chamou ele às favas?
– Chamei na hora: –X amelego, meu filho, vem cá. Você está comendo o doce do café? Como se pode tomar café amargo? Você não tem juízo, menino. Tem?
– Não.
– Não, o quê?
– Não sei de rapadura, não fui eu.
– E quem foi?
– E eu sei!?
– Fale a verdade.
– Tou falando...
– Não está.
– Então, foi o rato.
– Ah, e este cheiro na tua boca? Te peguei, moleque, com a boca na botija. Tu vais apanhar. Vou dizer a teu pai.

Aos dois ocorreu uma lembrança boa (e má). Do tempo do vício do menino, quando ficou amarelo, amarelo, e foi preciso tomar remédio de botica. Zequinha pensa e calcula: não há mais dinheiro, nem o dono da venda vai lhe fiar mais nada, tem certeza. Quanto mais o da botica.
Ele e a mulher entraram para o quarto com as mãos na cabeça, sem saber o que fazer para que o menino deixe este outro vício. Estão agastados porque, além de não terem mais isca, o café foi amargo, sem doce nenhum, tudo por conta do Xamelego.
Zeca disse:
– Vou ali no quintal e volto já.
Saiu com uma faca amolada na mão, seu jeito era de muita raiva. Xamelego nunca o tinha visto com aquela cara. Maria ficou se benzendo. Rezando. Pedia a Deus que os dois não se encontrassem.
Dali a pouco, Zeca entra. Com o menino nem falou nada. Bastou olhar. Era como se dissesse: “Saia!” E o moleque saiu.
Zequinha entregou a mulher uma folha de babosa, ainda escorrendo o líquido.
–Tome Mariinha, agora obrigue seu filho a não se lavar, não se banhar nunca. Ou pelo menos por uns dias. Quando ele estiver dormindo você lambuza isto nas mãos dele, nas duas. Agora, a rapadura que a gente tem que comprar deve ser líquida. Mel. Quando ele for comer, vai se lambuzar também. E vai se arrepender. Enquanto isto, nós vamos jejuar nosso café por uma semana.
Depois dessa decisão, Zequinha sai para trabalhar. Leva consigo, escondido, um meio sorriso. Graças a Deus.
Daquele dia em diante Xamelego deixou de roer as unhas. E dona Maria também nunca mais teve que se queixar à vizinha da “esperteza” do filho.
Nunca mais.


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