sexta-feira, 26 de setembro de 2008

MARIA

Conto

por Enzo Carlo Barrocco


Maria soubera há pouco que Jesus havia sido preso. O fato não lhe traiu imperturbação ou desassossego. Encostou-se à quina da porta com as mãos ao peito. Sabia, há tempos, dessas coisas, desse destino. Marta, que pernoitara ali, disse-lhe algo, mas não prestou atenção. Olhou, à porta interior, a bacia com a água para a ablução que lhe havia preparado; sabia que nunca mais a usaria. Contemplou o mocho, feito por ele, encostado à parede, ajudante, quando menino, à carpintaria de José. Jesus esteve àquela cozinha várias vezes. Àquela noite o esperou. Agora lhe veio uma dor pungir-lhe a alma. Aonde teriam levado seu filho? Pois um filho – pensava - é feito uma flor que mesmo durando apenas um dia, contudo a planta a concebe.

A manhã púrpura deva um ar aflitivo ao tempo. Botara a túnica alva e convidara Marta. Iria ao Pontifício; com certeza o haviam levado para lá. Descia as escadarias, atravessava as pontículas como se seus pés não tocassem os rebos. Pelas vielas, silêncio. Inédito que pessoa alguma, àquela hora, andasse por ali. Um asno, amarrado ao toco, levantara a cara à passagem das mulheres.

À frente do prédio um velho cego esticava uma espécie de tigela ao ouvir os passos. Perguntado se houvera ali alguma manifestação, respondeu com sua voz rouca e funda, que sim, mas pelo que escutara falar, pois nem prestara muita atenção, visto que estava preocupado em esmolar, um certo Nazareno provocara no Pontifício grande aglomeração, mas que há pouco fora levado a Pôncios.

Agarrada ao braço de Marta, nesse momento, já nem pertencia mais a terra. Era como se o vento morno de Jerusalém a carregasse. Contritas, atravessaram a quelha lateral ao prédio e ganharam as escadarias leste. Longe ouviram a turba. Pararam por trás de uma mureta baixa; Maria, então, viu o filho no meio daqueles homens rudes; com as mãos amarradas à frente, um manto rubro sobre os ombros, algo parecido como um cetro nas mãos e, só depois pôde definir, uma cora de espinhos à fronte. Naturalmente, pensou, estavam-no humilhando. Reconheceu Pilatos ao sólio, gesticulando, apontando. O alvoroço não as deixava escutar. Vez por outra, legionários com as lanças em horizontal empurravam o povaréu que mais se chegava à escadaria. Não tinha coragem de chegar mais perto. Mesmo não podia fazer tal, que todos aqueles acontecimentos já sabia.

Após, trouxeram um homem desconhecido para ela. Pilatos falara alguma coisa. Juntamente com o pretor apontava o outro homem. Depois viera saber que aquele homem chamava-se Barrabás, salteador que matara um decurião tempos antes. Depois disso a turba começou a gritar. A algazarra era tanta que a legião teve de usar lanças para controlar a manifestação. Antes, Pôncios, sem Maria poder entender, lavara as mãos numa vasilha trazida por um servo bruno e esguio. Por certo iriam crucificá-lo. Por uma sêmita acompanhou o povo, juntamente com Marta, e se postaram ao átrio central.

Um quarto de hora após, avistou o filho com um madeiro às costas seguido por uma decúria e dois outros condenados. Tiraram-lhe o cetro e o manto, deixando-lhe a coroa de espinhos à fronte. Bem a seus pés, Jesus parou. Estava sujo, descalço, roto, curvado pelo peso. Quis interpelá-lo, mas conteve-se. Esticou a mão para tocá-lo; um legionário fê-la recuar rudemente. Jesus não a viu. Um decurião obrigou-o a prosseguir...





quinta-feira, 25 de setembro de 2008

SILVESTRIN E O POEMA ESTRATÉGICO


Ricardo Silvestrin
(Porto Alegre 1963)
Poeta e ensaísta gaúcho



algo que mora
entre o aqui
e o agora


coisa ciosa
de suas coisas
silenciosa


alguma alma
um quase eu
que não demora


quarta-feira, 24 de setembro de 2008

OS BÊBADOS DO MERCADO

Conto

Enzo Carlo Barrrocco






















 
"Os Bêbados"
James Ensor (Oestende 1860 – Idem 1949)  pintor e gravador belga 



Ali pelas redondezas do mercado da Bandeira Branca tem uma súcia de bêbados que, sem ter outros afazeres, adotou o local como residência. Devem ser mais ou menos uns sete ou oito maltrapilhos que de dia ficam pelas barracas pedindo moedas e alguma coisa para comer e, à noite, com o pouco que arrecadam compram bebidas alcoólicas. Muitos cachorros, sem nenhuma importância para os donos, andam à tuna pela feira, angariando aqui e acolá algum bocado de alimento. O fato é que, um dia, um dos viciados teve uma idéia que, a princípio, chocou os outros companheiros de infortúnio.
- Mas Rufino – argumentou Severo – isso é doidice tua!
O outro, com a boca falha de dentes e cabelos despenteados, argumentou:
- Ora! Não se come boi, não se come carneiro e outros tantos bichos? Qual o problema de comer cachorro?
A idéia era macabra, e Severo, o mais velho da turma, com uma ferida enorme na canela esquerda, vergou a cabeça como se começando a abraçar a idéia. O velho Paulo, com seus cabelos ralos e sua barba dura apenas riu daquele despropósito.
Ficaram ali, sentados na calçada do prédio, urdindo aquele intento, alheios um féretro que passava pela Dr. Freitas rumo a algum cemitério da BR.
No outro dia à tarde era sábado e muitos feirantes já tinham fechado suas baiúcas. A feira, com suas ruas estreitas e lamacentas da chuva da manhã, estava praticamente deserta. Já davam 14 horas e os “papudinhos”, como são conhecidos os alcoólatras por estes lados, estavam impacientes. Decerto queriam que a feira acabasse de vez naquele dia para começarem a pôr em prática aquela combinação grotesca.
Naquela tarde, uma senhora gorda de cabelos grisalhos e nariz achatado, moradora da Dr. Freitas, para onde se avista uma baixa, estranhou que um dos vagabundos, um baixote com uma vasta queimadura na perna direita desde o alto do fêmur até o tornozelo, puxava um vira-lata por um fio elétrico.
Dali a dois dias se repugnou quando Marilda, a impertinente vizinha da casa da direita, contou a ela que os desocupados da feira haviam matado um cachorro para servir de tira-gosto.

A TENDA DOS BLOGUEIROS - REVISTA ENTRE ASPAS

AS NOVAS MARGENS DE IDMAR BOAVENTURA

AUTO-RETRATO

Sou mesmo sozinho.
Todo o universo
mora em meus olhos,
e o outro universo
não me diz respeito.
Moro sozinho
comigo mesmo.
Pintei meu retrato
no fundo do ego
e eu me contemplo
e a mim mesmo mesmo nego
(me faça o avesso
de uma velha farsa)
mas sou mesmo eu
e isso a mim basta.


IDMAR BOAVENTURA é poeta e professor. Mora em Conceição do Jacuípe, BA. Tem publicado o livro "O desossar (d)as horas" (Tribuna Cultural, 2004). Poema extraido de "A Outra Margem" (Secretaria de Cultura: Fundação Pedro Calmon, 2008).


Do blog do Giogio Silva, Paulo André e Thiago Lins


http://revistaentreaspas.blogspot.com


LIBÉLULAS RUBRAS - 9ª TRÍADE



terça-feira, 23 de setembro de 2008

SOSÍGENES COSTA: O POETA DAS CORES

por Enzo Carlo Barrocco

Sosígenes Marinho da Costa, poeta e cronista baiano (Belmonte 1901 - Rio de Janeiro 1968) passou a maior parte de sua vida na cidade de Ilhéus - BA, e se tornou um dos poetas brasileiros mais conceituados. Recatado e avesso à autopromoção, publicou apenas um livro em vida: Obra Poética, em 1959, ainda assim por insistência dos amigos. Trabalhou no jornalismo e foi membro da Academia dos Rebeldes, grupo que contava com a participação do romancista baiano Jorge Amado (Itabuna 1912 - Salvador 2001). Na década de 1950 foi secretário da Associação Comercial e Telegrafista do Departamento de Correios e Telégrafos, em Ilhéus. Pelo livro publicado em 1959, Sosígenes ganhou o Prêmio Jabuti em 1960. O poeta é vinculado à terceira geração do Modernismo. Segundo o crítico literário e poeta José Paulo Paes (Taquaritinga 1926 - São Paulo 1998): "a ter como certas as datas de composição das peças enfeixadas na primeira parte da Obra Poética, quando ainda andava acesa a campanha dos modernistas contra o soneto em prol da institucionalização do verso livre, entretinha-se o poeta a escrever seus 'sonetos pavônicos', todos rigorosamente rimados e metrificados, nos quais são perceptíveis traços parnasianos e, sobretudo, simbolistas, ainda que tais sonetos nada tenham de passadistas, caracterizando-se antes por uma modernidade que se aparenta, como a de Quintana, na exploração criativa das possibilidades expressionais dessa forma fixa, então esclerosada pela prática mecânica e abusiva". As imagens preciosíssimas e excelente musicalidade fazem de Sosígenes um poeta original, um artista do verso, com sutilezas e cores variadas. Os sonetos crepusculares deste poeta são admiráveis, inspirados em paisagens das cidades de Ilhéus e Belmonte. O seu longo poema "Ianarana" é um monumento modernista comparado, até, ao "Cobra Norato" do poeta gaúcho Raul Bopp (Tupanciretã 1898 - Porto Alegre 1984). Também famosos são os "sonetos pavônicos", nos quais sua mente fertilíssima cria aves fantásticas. O crítico literário e poeta José Paulo Paes teve fundamental importância para a reunião das poesias de Sosígenes Costa, pois organizou sua publicação em 1978 e 1979 e, também, lhe dedicou estudos críticos. Fiquemos, portanto, com três belíssimas jóis criadas pelo vasto universo da mente de Sosígenes:


Chuva de Ouro


As begônias estão chovendo ouro,

suspendidas dos galhos da oiticica.

O chão, de pólen, vai ficando louro

e o bosque inteiro redourado fica.


Dir-se-á que se dilui todo um tesouro.

Nunca a floresta amanheceu tão rica.

As begônias estão chovendo ouro,

penduradas nos galhos da oiticica.


Bando de abelhas através do pólen

zinindo num brilhante fervedouro,

as curvas asas transparentes bolem.


E, enquanto giram num bailado belo,

as begônias estão chovendo ouro.

Formosa apoteose do amarelo!



Palhaço Verde


Palhaço verde, o mar na areia ruiva

grita e gargalha, salta e cabriola,

como quem sofre, lírico, da bola.

E, querendo assombrar as moças, uiva,


brama, arremete e explode, o mariola,

abrindo uma alvacenta ventarola.

O mar é sempre o mesmo rapazola!

O mar é sempre o mesmo brincalhão


que, todo verde pela areia ruiva,

faz-se palhaço, bobo e valentão.

Vinde ver o bufão de roupa verde,


ver o bobo da corte de Netuno.

Na tarde cor-de-rosa, a roupa verde

do mar parece o tal pavão Juno.

Cai a noite. Do mar a roupa verde


fica de um verde negro, verde bruno.

Crianças, vinde à corte de Netuno

ver o palhaço verde gracejar.

Crianças, vinde ver cabriolar

pela areia amarela o verde mar.



O pavão vermelho


Ora, a alegria, este pavão vermelho,

está morando em meu quintal agora.

Vem pousar como um sol em meu joelho

quando é estridente em meu quintal a aurora.


Clarim de lacre, este pavão vermelho

sobrepuja os pavões que estão lá fora.

É uma festa de púrpura. E o assemelho

a uma chama do lábaro da aurora.


É o próprio doge a se mirar no espelho.

E a cor vermelha chega a ser sonora

neste pavão pomposo e de chavelho.


Pavões lilases possuí outrora.

Depois que amei este pavão vermelho,

os meus outros pavões foram embora.


segunda-feira, 22 de setembro de 2008

NOTAS PEQUENAS – DOIS GÊNIOS NA MESMA TELA


Viola, Minha Viola: Uma excelente pedida para o domingo


Croniquetas

Por Enzo Carlo Barrocco



Momento de êxtase da música brasileira, ontem, domingo, no programa “Viola, Minha Viola” da TV Cultura de São Paulo, apresentado por Inezita Barroso (São Paulo 1925), que foi o encontro de dois gênios da nossa música: Yamandu Costa (Passo Fundo, RS 1980) e Renato Borghetti (Porto Alegre 1963) dignos representantes da música instrumental gaúcha. Momentos como estes, que não acontecem a todo instante, é que elevam o nível da Música Popular Brasileira. Parabéns a produção do programa!


sexta-feira, 19 de setembro de 2008

A PERFORMANCE POÉTICA DE RICARDO CORONA


Ricardo Corona
(Pato Branco 1962)
Poeta e contista paranaense


A GARGALHADA
DO MACACO


Para Sheila Tramujas


Acordei com um retalho
de fio umbilical na boca.
Ariadne, feito peixe mutante,
tecia em meus lábios
o sabor que só agora traduzia.
Sabor que viera no vento,
da margem do grande útero
- um uivo na memória -


De lá vêm sinais elétricos,
pensamentos líquidos
de seres umedecidos
e pulmões duplamente ativados,
que mostram o caminho das escamas
e as pegadas em terra firme.
E ouvem a gargalhada do macaco.


terça-feira, 16 de setembro de 2008

FLORES DE TRACUATEUA - Canto nº 5






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A TENDA DOS BLOGUEIROS - O MURO E OUTRAS PÁGINAS

LAR GADO

Wilson Gorj

A mãe era uma vaca. O pai, portanto, não podia ser outra coisa senão um touro. O filho mais velho pastava na vida, um burro. O caçula, grande mal-criado, vivia de bode amarrado. Para fechar o curral, havia a filha do meio, ovelha negra da família.

Ovelha que um dia o Amor veio domesticar, vestindo-a de branco.

De véu e grinalda, casou-se com um fazendeiro.



DO BLOG DO WILSON GORJ


http://omuroeoutraspgs.blogspot.com/

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

HAI-KAIS - 8º Terceto




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sexta-feira, 12 de setembro de 2008

GILKA MACHADO: A POESIA DO DESEJO

por Enzo Carlo B arrocco

Gilka da Costa Melo Machado, poeta fluminense(Rio de Janeiro 1893 – Idem 1980), foi uma mulher avançada em relação ao seu tempo. Como poeta, foi combatida veementemente por parte dos escritores modernistas, mormente pelo poeta, romancista e ensaísta paulista Mário de Andrade (São Paulo 1893 – Idem 1945) que a achava escandalosa. Os poemas audaciosos de Gilka desafiavam os preceitos e a conduta moral de seu tempo colocando pânico nos falsos moralistas do início do século (hoje existem muitos ainda). Seus versos falam da condição feminina, expondo de forma ousada para a época o desejo da mulher se libertar das amarras machistas daqueles tempos. Em 1933, Gilka foi eleita “A Maior Poetisa do Brasil”, por concurso da revista “O Malho”, da cidade do Rio de Janeiro. Em 1979, a escritora foi agraciada com o prêmio “Machado de Assis”, da Academia Brasileira de Letras. Nesse mesmo ano a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro prestou homenagem à mulher brasileira na pessoa de Gilka. No início da carreira Gilka se valeu do simbolismo para escrever seus poemas. Obras principais: Cristais Partidos, 1915; Estados de Alma, 1917; “Poesias 1915 / 1918”, 1918; Mulher Nua, 1922, O Grande Amor, 1928: Meu Glorioso Pecado, 1918; Carne e Alma, 1931; Sublimação, 1928; Meu Rosto, 1947; Velha Poesia, 1968; Poesias Completas, 1978. Gilka Machado está perene dentro de nosso contexto literário, pois sua poesia é inigualável. Fiquemos, portanto, com três raríssimas jóias produzidas pelo vasto universo da mente de Gilka.


Fecundação


Teus olhos me olham

longamente,

imperiosamente

de dentro deles teu amor me espia.


Teus olhos me olham numa tortura

de alma que quer ser corpo,

de criação que anseia ser criatura


Tua mão contém a minha

de momento a momento

é uma ave aflita

meu pensamento

na tua mão.


Nada me dizes,

porém entra-me a carne a persuasão

de que teus dedos criam raízes

na minha mão.


Teu olhar abre os braços,

de longe,

à forma inquieta de meu ser,

abre os braços e enlaça-me toda a alma.


Tem teu mórbido olhar

penetrações supremas

e sinto, por senti-lo, tal prazer,

há nos meus poros tal palpitação,

que me vem a ilusão

de que se vai abrir

todo meu corpo

em poemas.



Esboço


Teus lábios inquietos

pelo meu corpo

acendiam astros...

e no corpo da mata

os pirilampos

de quando em quando,

insinuavam

fosforecentes carícias...

e o corpo do silêncio estremecia,

chocalhava,

com os guizos

do cri-cri osculante

dos grilos que imitavam

a música de tua boca...

e no corpo da noite

as estrelas cantavam

com a voz trêmula e rútila

de teus beijos...



Volúpia


Tenho-te, do meu sangue alongada nos veios,

à tua sensação me alheio a todo o ambiente;

os meus versos estão completamente cheios

do teu veneno forte, invencível e fluente.


Por te trazer em mim, adquiri-os, tomei-os,

o teu modo sutil, o teu gesto indolente.

Por te trazer em mim moldei-me aos teus coleios,

minha íntima, nervosa e rúbida serpente.


Teu veneno letal torna-me os olhos baços,

e a alma pura que trago e que te repudia,

inutilmente anseia esquivar-se aos teus laços.


Teu veneno letal torna-me o corpo langue,

numa circulação longa, lenta, macia,

a subir e a descer, no curso do meu sangue.



ALVARENGA PEIXOTO: O POETA INCONFIDENTE

Inácio José Alvarenga Peixoto, poeta fluminense (Rio de Janeiro 1744 – Ambaca, Angola 1793), estudou no Colégio dos Jesuítas no Rio de Janei...