por Enzo Carlo Barrocco
O Crime do Padre Amaro: Os poderes ocultos da igreja católica
Ao ser publicado pela primeira vez em 1875, “O Crime do Padre Amaro” (L&PM, 2006, 391 páginas), o primeiro grande romance de Eça, causou gritos e protestos da igreja católica incomodada com as denúncias explícitas narradas por ele. Este romance introduziu em Portugal o realismo-naturalismo, sendo um divisor de águas na literatura portuguesa. Uma obra-prima que, inclusive, se tornou um documento humano e social de uma época, visto que a História confirma todas as denúncias feitas por Eça. O falso moralismo, a vida abastada dos clérigos, a hipocrisia burguesa e os abusos em todos os setores da igreja são as feridas que o autor fustiga. O romance é narrado na terceira pessoa e toda a história se passa em Leiria, interior de Portugal onde Eça, por algum tempo foi administrador do Concelho, daí ter escolhida a pequena vila como pano de fundo, para uma de suas obras-primas. A crítica de Eça de Queiroz não se dirige apenas ao provincianismo da Vila de Leiria, mas a todo Portugal e à sociedade da época. Se hoje a igreja católica comete absurdos, como se vê a toda hora na televisão, chegando ao ponto de até crime de pedofilia pelas altas autoridades do clero, imagine há cento e tantos anos. Amaro, portanto, é o padre recém-formado que é destacado para a paróquia de Vila de Leiria em substituição ao antigo pároco que falecera. Instalado na vila, Amaro se apaixona por Amélia, jovem filha da dona da casa onde Amaro alugara um quarto. Ao descobrir que o seu conselheiro e confidente amigo, Cônego Dias, tem um caso amoroso com S. Joaneira, mãe de Amélia, o padre Amaro se vê no direito de, também, ter uma amante. Daí por diante Amaro se envolve sexualmente com Amélia desencadeando situações inesperadas. Por fim, Amélia fica gestante e diante do desespero do padre, é levada à Ricoça, a propriedade rural do Cônego Dias, onde ficaria longe dos olhares de todos. No parto, porém, Amélia morre por convulsões, embora a criança tenha nascido com saúde. Uma história bem urdida, com a genialidade de Eça de Queiroz que, depois desse grande trabalho, escreveria mais algumas excelentes narrativas. Eu particularmente já li este livro quatro vezes e sempre com o entusiasmo da primeira leitura.
TEXTO DO LIVRO O CRIME DO PADRE AMARO
Foi no domingo de Páscoa que se soube em Leiria, que o pároco da Sé, José Miguéis, tinha morrido de madrugada com uma apoplexia. O pároco era um homem sangüíneo e nutrido, que passava entre o clero diocesano pelo comilão dos comilões. Contavam-se histórias singulares da sua voracidade. O Carlos da Botica — que o detestava — costumava dizer, sempre que o via sair depois da sesta, com a face afogueada de sangue, muito enfartado:
— Lá vai a jibóia esmoer. Um dia estoura!
Com efeito estourou, depois de uma ceia de peixe — à hora em que defronte, na casa do doutor Godinho que fazia anos, se polcava com alarido. Ninguém o lamentou, e foi pouca gente ao seu enterro. Em geral não era estimado. Era um aldeão; tinha os modos e os pulsos de um cavador, a voz rouca, cabelos nos ouvidos, palavras muito rudes.
Nunca fora querido das devotas; arrotava no confessionário, e, tendo vivido sempre em freguesias da aldeia ou da serra, não compreendia certas sensibilidades requintadas da devoção: perdera por isso, logo ao princípio, quase todas as confessadas, que tinham passado para o polido padre Gusmão, tão cheio de lábia!
E quando as beatas, que lhe eram fiéis, lhe iam falar de escrúpulos de visões, José Miguéis escandalizava-as, rosnando:
— Ora histórias, santinha! Peça juízo a Deus! Mais miolo na bola!
As exagerações dos jejuns sobretudo irritavam-no:
— Coma-lhe e beba-lhe, costumava gritar, coma-lhe e beba-lhe, criatura!
Era miguelista — e os partidos liberais, as suas opiniões, os seus jornais enchiam-no duma cólera irracionável:
— Cacete! cacete! exclamava, meneando o seu enorme guarda-sol vermelho.
(...)
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